O homem

O homem é um primata e a sua história está ligada à dos primatas. Os primatas aparecem há uns 70 milhões de anos e surgem porque nessa altura - há sempre uma razão ambiental - aparecem as plantas com flores. As plantas com flores fazem frutos. De facto, os primatas são animais insectívoros que se adaptaram ao consumo de frutos e à vida nas árvores. Aliás, ainda temos em nós os vestígios disso tudo: continuamos a comer fruta, temos os olhos à frente do rosto para apreciar as distâncias (o que é bom para saltar de ramo em ramo), vemos às cores, o que é útil para saber se a fruta está madura ou não.
A vida nas árvores dos nossos antepassados também ficou registada na nossa clavícula - que não é feita para abraçar melhor os amigos, mas para abraçar melhor as árvores e conseguir trepar. Temos cinco dedos para agarrar coisas e se perdemos as garras e adquirimos unhas, também foi para facilitar a subida. Todos estes sinais anatómicos remontam à época da passagem dos insectívoros para os primatas.
Damos agora um grande salto e chegamos a dez milhões de anos atrás, quando a família dos grandes símios africanos, nomeadamente os chimpanzés, se separa da nossa família. E nessa altura, sem dúvida também por razões ambientais, uns continuam a viver num meio coberto, florestal, denso, enquanto os outros - nós - passam para um meio menos coberto, uma floresta menos densa ou uma savana arborizada. É aí que começa a aparecer uma série de pré-humanos, que são preciosos porque nos fornecem informações sobre o nosso passado próximo. São os fósseis de Tumai, com sete milhões de anos [descobertos no Chade em 2001], de Orrorin, com seis milhões de anos [2000, Quénia], os ardipitecos, com 5,8 a 4,4 milhões de anos, os australopitecos como a Lucy [3,2 milhões de anos], etc. Estes hominídeos ainda não são humanos.

Que características têm?
São todos tropicais, surgem todos em África, têm um encéfalo que tende a desenvolver-se aos poucos, uma face que vai aos poucos perdendo o focinho para se tornar mais plana, andam todos de pé. No início, são bípedes e arborícolas ao mesmo tempo - andam a pé mas continuam a trepar às árvores. Mas há uns quatro milhões de anos, acabam por se virar exclusivamente para a marcha, abandonando os ramos. Estas espécies são o viveiro, o bouquet de formas que precede a Humanidade. Entre eles está Lucy, a minha preferida. De quem falaremos mais adiante...
Chegamos assim a uns três milhões de anos atrás - e é aí que um desses pré-humanos se torna homem. Mais uma vez, por causa de uma mudança climática - e neste caso, para se adaptar a um aquecimento. Isto acontece há 2,7 ou 2,8 milhões de anos. Eu estudei esta questão e mostrei a correlação entre as mudanças climáticas e a origem do homem. O homem aparece porque um pré-humano teve a obrigação de se adaptar a uma mudança ambiental; a transformação de pré-humano em humano é uma adaptação ambiental.

O que distingue o pré-humano do humano?
Duas coisas essenciais. Como vimos, o pré-humano já estava de pé, era exclusivamente bípede, mas desta vez, são os dentes que mudam: tornam-se dentes de omnívoro. Como há menos vegetais [devido ao aquecimento], esse pré-humano começa também a comer carne. O seu cérebro também se desenvolve nitidamente, tanto do ponto de vista volumétrico como da sua complexidade. Como os cérebros dos nossos antepassados já desapareceram, fazem-se moldes da cavidade que ocupavam no crânio e os moldes mostram uma crescente complexidade dos lobos cerebrais e da irrigação sanguínea, que deixaram as suas marcas na face interna da caixa craniana.
Por sua vez, o desenvolvimento do cérebro, que é a forma de adaptação escolhida por aquela personagem - o Homo habilis - traz com ele a consciência, o que é realmente extraordinário. Significa que em vez de saber - como Lucy provavelmente sabia -, graças a um bocadinho de córtex a mais, a um punhado de células cerebrais a mais, o Homo habilis sabe que sabe, como uma espécie de retorno em espelho. E, sabendo que sabe, pode antecipar o futuro, pode imaginar coisas. É a partir dessa altura que, em vez de utilizar simplesmente os objectos à sua volta, começa a transformá-los. E isso muda tudo. "More is different", como dizem os ingleses. Apenas um bocadinho de cérebro a mais e sobe-se logo para o nível acima. Acontece como nos impostos: basta ganhar mais uns cêntimos para passar para o escalão superior e pagar três vezes mais (acabei de pensar nisso agora mesmo). O mesmo acontece com a vida: com um pequeno acrescento, o cérebro torna-se capaz de reflexão.
Portanto, o homem aparece nos trópicos, em África, onde viveram todos os seus predecessores, incluindo o pré-humano que se tornou homem, e vai espalhar-se geograficamente, primeiro por esse continente fora e depois pela Eurásia.
É, portanto, o Homo habilis que começa a viajar.
Sim, penso que sim. Há quem tenha dito que foi o Homo erectus [mais tardio], mas não há qualquer razão para que o Homo habilis tenha ficado lá à espera, a pensar "quando for erectus, vou começar a mexer-me"

E essa migração acontece porquê?
Acho que tem a ver com a procura de alimentos, numa altura em que a demografia começa lentamente a crescer. Quando um grupo destes humanos caçadores-recolectores atinge um certo patamar numérico, alguns deles têm de formar um novo grupo noutro sítio. E quando esse grupo atinge, por sua vez, o patamar, um novo grupo desloca-se para um pouco mais longe. Fala-se em 50 quilómetros por geração, o que significa que foram precisos 15 mil anos para passar dos trópicos para a Europa. Como as técnicas de datação não são tão finas, não os vemos a deslocar-se; vemo-los ali e depois vemo-los aqui - e entretanto, passaram-se 15 mil anos.

Mas então, onde aparece pela primeira vez o Homo sapiens?
É preciso não esquecer que os territórios na altura eram imensos: abrangiam a totalidade da África e Eurásia. Os diversos grupos estavam isolados uns dos outros e isso conduziu a uma diversificação das espécies humanas. O Homo habilis inicial tornou-se Homo erectus em cada sítio onde estava - e, por sua vez, o Homo erectus tornou-se Neandertal na Europa (que funcionava como uma ilha na época das glaciações), sapiens em África e na Ásia continental, Homem de Java na ilha de Java e Homem das Flores na ilha das Flores. Há sem dúvida outros, cujos fósseis vamos encontrar um dia.

Esta diversificação humana aconteceu há quanto tempo?
Há 50 a 100 mil anos. Mas a difusão do homem começou dois milhões de anos mais cedo e a sua diversificação há mais de um milhão de anos. Há quem diga que o Neandertal tem 200, 300 ou mesmo 400 mil anos. Os mais arrojados dizem 500 mil - e eu digo que tem muito mais. E desses quatro tipos de humanos (Neandertal, sapiens, Java, Flores) só o Homo sapiens é que se vai deslocar (há 40 a 60 mil anos).

O Homo sapiens espalha-se a partir da África?
Da África e da Ásia (China, Mongólia, Sudeste asiático). Passa para a América, onde não há ninguém, para a Austrália, onde também não há ninguém. Mas também para Java, Flores e para a Europa, onde já há outros homens. Em todas as regiões onde já existem populações, o Homo sapiens vai coabitar com elas e acabar por as eliminar, por assim dizer. A prazo, o Neandertal, o Homem de Java e o de Flores desaparecem e só resta o Homo sapiens. É por isso que somos todos sapiens.

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